sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A Carta

— Sabe, um dia tudo perde a graça.
— É verdade...
— Tudo em volta deixa de crescer e começa a migrar. O que ficou começa a escurecer e por fim, morre.
— Mas pq isso agora? O que houve?
— Estou fadigado.
— Normal, todo mundo fica pelo menos uma vez. Devemos sempre nos lembrar é de que vai mudar.
— E quando a esperança lhe faltar? E quando não lhe restares nada? Nenhuma arma, nenhum argumento!
— Mas sempre há alguma coisa!
— Pois eu sinto que não. Estou cansado. Não quero mais lutar.
— Que isso! Olhe em volta! ...Me diga o que vê.
— ...Vejo um abismo.
— Hum... continue.
— Vejo que me encontro lá. Cercado de cacos de vidros, de pedras e de corpos.
— Na verdade ali só tem água.
— Você pediu pra perguntar o que eu via.
— Sim... Bom... Mas eu estou te corrigindo.

— Não há mais tempo para isso. Não há mais nada que me prenda nessa vida.
— E seu filho? Sua mulher? Sua empresa?

—  Nada mais importa. Sempre traí Susana. Poucas vezes dei atenção ao meu filho. E na minha empresa... Faça um favor a mim.
— Qual?
— Escreva uma carta.
— Você só pode estar maluco!
— Para falar a verdade, sinto-me assim. Maluco.
— Mas quanto drama! Parece até que estou num filme!
— ...Escreva uma carta.
— Para quem? Todos já se partiram!
— Sim, verdade.
— ...Então?
— Mas nem todos se foram.
— O que você está querendo dizer com isso??
— Eu já parti. Não me sinto mais neste mundo. Não aguento mais sentir dor. Preciso descansar, ir para um lugar onde isso não exista.
— Mas você não pode ir! Somos um só, esqueceu?
— Claro que não me esqueci. Não há como.
— Então! Se você for, terei de ir junto!
— Não há escolha. Já tomei minha decisão.
— Pense melhor...
— Hum... Já tive tempo o suficiente para pensar. Aliás, quem faz isso sou eu! Você não tem escolha.
— Então está bem, se você não vai mudar de ideia... o que posso fazer em seu último pedido?
— Escreva a carta.
— Mas pq uma logo uma carta??
— Pq quero me lembrar do que vivi nesse mundo. Tudo o que vivi de bom, o que me fez feliz, me fez sorrir. Coisas que aprendi, como me emocionei no nascimento do meu filho... e todo o resto que me trouxe felicidade até hoje. ...Ah!! ...Mas não ouse escrever sobre angústia! Quero recordar apenas momentos alegres, nem que sejam pequenos. ...Pq do outro lado não há espaço para sofrimento, pesares e arrependimentos.

E assim ele foi dando instruções, para que cada coisa e cada palavra fossem planejadas. Afinal, ele temia que não fosse se lembrar de tudo o que um dia foi importante para ele. E então seu companheiro relatou tudo o que acontecera com seu amigo. Longa, esta carta, falava sobre todos os momentos de passara sorrindo, alegre e aparentemente feliz. Viagens, prazeres de todos os tipos, festas, pescarias... Sr. Antônio até inventou casos que os dois tiveram com meninas simpáticas na juventude.
Comentou sobre como eles quando criavam histórias, escreviam e se fantasiavam de heróis na infância.
 Mas, na sua descrição, ele cometeu apenas um erro, e o mais grave dos erros. Não escrevera mal a carta, pelo contrário. Mas a escrevera errado.
Sr. Antônio citou "momentos de felicidade" ao invés de "momentos de prazer". Aliás, como saberemos distingui-los? O que a mente interpreta como prazer e a felicidade, qual a barreira entre elas? O corpo pensa como felicidade o que a mente pensa como prazer e vice-e-versa? Bom, talvez.


A questão é que agora não importa mais. Antônio estava morto. Mas não tanto quanto Sr. Antônio. Antônio um dia foi feliz e morreu de tristeza. Tinha tudo o que queria, mas não precisou esperar o final de sua vida para tomar certa desisão: queria morrer. Já seu companheiro, sempre conseguiu o que quis e morreu por consciência. Tinha uma vida altamente confortável, possuía carros, casas, terrenos de alto valor e uma empresa que lhe dava muito lucro, enquanto levava uma vida de pecados camuflados.
Antônio era sua mente; cansada, angustiada, praticamente mórbida. Estresses, preocupações, interesses. Sr. Antônio era seu corpo, seu fiel amigo de todos os dias. Era com quem realizava seus devaneios, vontades e presenciava as amarguras de pesares.

Acabada a carta, ouviu-se um *Glup*, um tipo de mergulho, só que mais brusco, violento.
Sr. Antônio se jogara. E este era seu fim. Triste fim.

No final das contas a carta não foi entregue. Antônio pensara que estava sonhando, mas um tipo de sonho bem real, um pesadelo. Estava só e se lembrava de tudo o que acontecera na sua vida (da qual se arrependeu da maioria) Sr. Antônio estava junto a ele, mas dilacerado. Quase não respondia mais. E os dois estavam juntos novamente. Não havia alegria, como ele pensava. Mas, sim, todo o tipo de dor que evitara.

2 comentários:

  1. Será pior ter o corpo preso a esse mundo tendo a alma dilacerada?
    Por isso qu etemos que buscar a paz de corpo e a paz de espírito.

    ResponderExcluir
  2. Verdade! Viver de forma que seja possível ser feliz o máximo que puder, é o que há: Trocar preocupações por ocupações, trabalhar com prazer, amigos, ser gente boa com todo mundo e td mais torna a vida bem mais fácil e e tranquila. Ser feliz é mole! Como diz o ditado: "A vida é bela, nós que f... ela." XDDD

    ResponderExcluir

Regência

Você estava certo. Minha autossuficiência não foi embora. Ela nunca irá. Ela sou eu e eu sou ela; é como sei ser e não me privo ou me aban...